Em 1997 eram iniciadas as obras do famoso gasoduto Bolívia-Brasil para aumentar a oferta do combustível em território nacional nos postos de combustível, residências e indústrias. O famoso gasoduto tem sua “nascente” na cidade de Santa Cruz de La Sierra, na Bolívia, e finda em Canoas (RS). São mais de 3150 km de extensão de uma estrutura que corta cinco estados brasileiros (Mato Grosso do Sul, São Paulo, Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Sul) e cerca de quatro mil propriedades em 135 municípios. Um deles é a bucólica Itapeva, distante cerca de 270 km da capital São Paulo. Muito embora a obra tenha sido extremamente importante para o nosso País, o fato de Itapeva ser local por onde passa este progresso quase nunca é lembrado ou mesmo percebido.
Agora estamos em 2020 e, mais uma vez, a modernidade cruza os bairros da cidade de pouco mais de 90 mil habitantes. O 1º Tabelionato de Itapeva produziu sua primeira procuração pública 100% digital com o uso de videoconferência e assinaturas ICP-Brasil (foto). Se a cidade, que data do ano de 1769, esteve tão acostumada a ser intersecção da modernidade em tempos remotos e atuais, talvez seu exemplo possa inspirar outros tantos municípios brasileiros que desejam aprimorar suas experiências cartoriais.
A Associação das Autoridades de Registro do Brasil (AARB) foi atrás dessa história e apresenta uma pequena entrevista com o tabelião titular da serventia André Garcia. Para quem não se recorda, Garcia é ex-procurador da Advocacia Geral da União (AGU) e atuou por nove anos no Instituto Nacional de Tecnologia da Informação (ITI), ocupando inclusive o cargo de procurador-federal chefe na autarquia.
AARB – Antes de falarmos sobre a inovação das procurações públicas digitais, conte-nos sobre essa transição profissional. As carreiras de procurador e de tabelião são muito correlatas e, ao mesmo tempo, bastante diferentes.
André Garcia – Sim, é verdade. Tive a felicidade de ser procurador federal por doze anos, dos quais nove foram dedicados exclusivamente ao Instituto Nacional de Tecnologia da Informação (ITI). Lá, inclusive, tive o primeiro contato com a área notarial, diante do pleito, à época, de os cartórios passarem a também emitir certificados digitais ICP-Brasil. São áreas correlatas, sem dúvida alguma, pois todos somos profissionais do direito, mas díspares principalmente na atuação: conquanto como procurador federal eu era um advogado defensor dos interesses da União, como tabelião sou um terceiro imparcial, que deve garantir a validade das manifestações de vontade entre particulares.
Agora, falando sobre as procurações púbicas digitais, tema da nossa entrevista, sabemos que ainda há uma considerável parcela de profissionais dos cartórios que resistem ao documento digital. Qual a sua opinião a respeito?
Não podemos negar que o mundo cartorial foi criado e sedimentado em uma época na qual o papel era a base documental. Hoje, não mais. Então é natural que exista alguma resistência – cada vez menor, diga-se de passagem – para essa mudança tão significativa. Na verdade, a função do tabelião não se alterou: produzir documentos seguros, com vistas a conferir paz social e evitar processos judiciais. Assim, seja em papel, seja em meio digital, a escritura pública continuará sendo uma escritura pública, ou seja, ato dotado de fé, nos expressos termos do art. 215 do Código Civil. Nesse sentido, logo que assumi a função, publiquei o artigo “O cartório do dia depois de hoje” no intuito de desmistificar um pouco essas mudanças.
E como surgiu a ideia de migrar tão importante documento para o mundo digital?
Acredito que a migração dos documentos em geral, e não apenas os notariais e registrais, seja uma tendência universal – e natural. A facilidade do eletrônico é inegável frente ao papel. Imaginemos antigamente, quando errávamos no documento físico. Ou se rasurava (dando a impressão de possível fraude) ou fazíamos um novo, perdendo todo o tempo e trabalho então despendidos. Não podíamos simplesmente apagar e reescrever o correto, algo que o meio digital nos possibilita de maneira infinita. Mas talvez a maior alteração do digital frente ao físico seja a facilidade trazida pelos hiperlinks, nos quais, por meio de um simples toque, somos automaticamente encaminhados a uma nova informação. Talvez, diante do exposto, o verdadeiro questionamento não seja propriamente relacionado aos benefícios dos documentos eletrônicos, mas sim de que forma conseguimos alcançar a segurança computacional necessária.
A experiência por meios digitais pode proporcionar muita conveniência e, simultaneamente, elevar os riscos dos atos jurídicos. Como foram pensadas as etapas de verificação documental, confirmação da ciência dos interessados e assinatura dos atos?
O Provimento nº 12/20, publicado pelo e.TJSP na data de 29/04/2020, ou seja, há apenas cinco dias, foi muito sensível ao ponto, pois conseguiu conjugar, de uma só vez, a praticidade da manifestação eletrônica (ao aceitar a videoconferência como forma de externalização de vontades) com a segurança da informação duplamente conferida: tanto pelo Tabelião (pessoalmente responsável pelos atos lavrados nessa maneira – art. 10 do Provimento); quanto pelas próprias partes, que devem utilizar seus certificados digitais ICP-Brasil para assinar, remotamente, o arquivo pdf da escritura ou procuração pública, cujo hash integrará o livro de notas.
A atual crise imposta pela pandemia do novo coronavírus acelerou bastante a digitalização em inúmeros setores, como a saúde, por exemplo. O Cartório de Itapeva pretende continuar investindo nesta modalidade quando a quarentena acabar? Existe a chance de outros documentos migrarem para o meio eletrônico?
Lembro com muita deferência da minha colega Dra. Ana Amelia Barreto, advogada entusiasta da certificação digital, que costumava falar, em suas divertidas palestras, “quem não é ponto.com é ponto morto”. Certamente temos todos, hoje, que nos adaptar. Vejo o triste estado de coisas que nos encontramos como um catalisador das atuais mudanças, que, entretanto, já eram inevitáveis. Então façamos da forma correta. Hoje, em São Paulo, já podemos fazer todo tipo de escrituras e procurações públicas de forma eletrônica, à exceção, apenas, dos testamentos. Apesar de a autorização para tanto ser de trinta dias (art. 11 do Provimento), caso se torne em uma experiência exitosa – como sinceramente acredito – não vejo motivo para não continuarmos com mais essa alternativa a favor do cidadão.
E por que usar certificados digitais da ICP-Brasil?
O certificado digital ICP-Brasil é o estado da arte em termos de segurança da informação. Apenas com ele se garante, de uma só vez, que aquela pessoa é realmente ela e que a mensagem transmitida eletronicamente não sofreu qualquer alteração no percurso remetente-destinatário. A ferramenta do Login e senha ou mesmo o perfil com foto em redes sociais não têm como assegurar a idoneidade das manifestações eletrônicas. Se é verdade falarmos que atualmente sofremos uma crise de abundância informacional, não menos correto é perceber também que nunca existiu tanta informação falsa, e tanta informação falsa aprimoradamente elaborada, a exemplo das deepfakes. Em contraposição a isso, encontramos uma sinergia virtuosa entre os tabeliães, garantidores constitucionais (art. 236 da CF/88) da identidade, capacidade e validade dos atos e negócios jurídicos, com a certificação digital ICP-Brasil, que muito nos auxilia nessa importante tarefa de assegurar a autoria e a integridade do documento virtual. Em singela metáfora, se não faz sentido assinarmos uma escritura pública a lápis, no mundo eletrônico a caneta com tinta indelével é justamente a certificação digital ICP-Brasil.