O Instituto Paulo Montenegro e a ONG Ação Educativa, parceiros na criação e implementação do Indicador de Alfabetismo Funcional (Inaf), lançam - com o apoio do IBOPE Inteligência – o estudo especial Alfabetismo e Comportamento Financeiro, cujos resultados indicam algumas pistas sobre a relação entre alfabetismo e a maneira como as pessoas lidam com as finanças pessoais e familiares.
O estudo, que entrevistou 2002 pessoas entre 15 e 64 anos de idade, residentes em zonas urbanas e rurais de todas as regiões do País, foi desenvolvido com base na metodologia Inaf, que desde o estudo anterior – Alfabetismo no Mundo do Trabalho -, também realizado em 2015 e divulgado em fevereiro deste ano, passou a contemplar cinco grupos: Analfabeto, Rudimentar, Elementar, Intermediário e Proficiente.
Os níveis de alfabetismo medidos pelo Inaf são definidos a partir de habilidades de leitura, escrita e matemática, crescentemente exigidas nas situações do dia a dia nos mais diversos âmbitos da vida social. Um destes âmbitos é o do comportamento financeiro dos indivíduos, refletido na formação de poupança e no uso de mecanismos de financiamento.
“Viveu-se no Brasil um período de forte expansão do acesso do crédito pelas famílias, como consequência do ciclo de crescimento econômico, que levou à incorporação de um novo perfil de consumidor de serviços financeiros, provenientes da classe média emergente. Para contribuir com uma melhor compreensão desse novo cenário, decidimos realizar este estudo especial. Com base em um amplo conjunto de perguntas combinadas com o desempenho no teste cognitivo do Inaf, seus resultados permitem compreender as relações entre os diferentes níveis de alfabetismo e o comportamento das pessoas na gestão de seus recursos financeiros”, explica Ana Lúcia Lima, diretora executiva do Instituto Paulo Montenegro.
“O estudo torna-se ainda mais relevante diante das perspectivas de um ciclo econômico recessivo, cujo impacto se faz sentir na formação de poupança e nos desafios de uso sustentável dos mecanismos de crédito por parte das famílias”, destaca.
A tabela a seguir apresenta, com base nos dados de 2015, o perfil da população brasileira entre 15 e 64 anos, de acordo com os cinco grupos de alfabetismo definidos a partir dos cortes da escala.
Tabela 1 – Distribuição da população por grupos de alfabetismo funcional
Nível | % | N º de respondentes |
Nível 1- Analfabeto | 4% | 88 |
Nível 2 - Rudimentar | 23% | 457 |
Nível 3 - Elementar | 42% | 843 |
Nível 4 - Intermediário | 23% | 453 |
Nível 5 - Proficiente | 8% | 161 |
Total | 100% | 2002 |
Analfabeto e Rudimentar: analfabetos funcionais |
27% | 545 |
Elementar, Intermediário e Proficiente: alfabetizados funcionalmente | 73% | 1.457 |
Responsabilidade sobre decisões financeiras
O estudo especial Alfabetismo e Comportamento Financeiro descreve algumas práticas financeiras dos entrevistados em âmbito pessoal e familiar, relacionando-as com os níveis de alfabetismo definidos pela escala Inaf.
Na amostra pesquisada, 63% dos entrevistados declararam que participam das decisões financeiras em suas famílias: 36%tomam as decisões sozinhos; 23% afirmaram compartilhá-las com o cônjuge ou companheiro e 4% dividem essa decisão com outros membros da família. Os demais respondentes indicam como responsável pelas decisões financeiras em sua casa apenas o cônjuge/ companheiro (9%), pai/mãe/adulto responsável (23%) ou outra pessoa (4%).
Tabela 5a - Responsabilidade por decisões financeiras no âmbito doméstico por nível de alfabetismo
Total | Analfabeto | Rudimentar | Elementar | Intermediário | Proficiente | ||
Base | 2.002 | 88 | 457 | 843 | 453 | 161 | |
O respondente | 714 | 36% | 63% | 42% | 34% | 30% | 26% |
Respondente + cônjuge | 465 | 23% | 17% | 19% | 25% | 24% | 25% |
Respondente + outro | 84 | 4% | 1% | 5% | 3% | 6% | 6% |
Companheiro / cônjuge | 188 | 9% | 9% | 14% | 9% | 6% | 6% |
Pai / mãe / adulto responsável | 455 | 23% | 7% | 16% | 24% | 27% | 31% |
Outra pessoa | 85 | 4% | 3% | 3% | 3% | 7% | 5% |
Não sabe / não respondeu | 11 | 1% | 0% | 0% | 0% | 1% | 2% |
TOTAL | 2.002 | 100% | 100% | 100% | 100% | 100% | 100% |
RESPONSÁVEIS | 1.263 | 63% | 81% | 67% | 63% | 59% | 57% |
NÃO RESPONSÁVEIS | 728 | 36% | 19% | 33% | 37% | 40% | 42% |
Na maioria dos casos observados neste estudo, a responsabilidade pelas decisões financeiras no âmbito familiar se concentra nas mãos aos adultos mais velhos, um grupo que tem menores níveis de alfabetismo. Como consequência, observa-se, por exemplo, que:
- 2 em cada 3 pessoas (67%) com nível rudimentar de alfabetismo são responsáveis por decisões financeiras em seus lares, sendo que 42% o fazem sem compartilhá-las com outro familiar.
- Já no grupo de alfabetismo em nível intermediário e proficiente, que reúne pessoas com maior escolaridade, cai a proporção de responsáveis pelas decisões financeiras para, respectivamente, 59% e 57%, e cresce a proporção de decisões compartilhadas com outros familiares para 30% versus 18% junto aos analfabetos.
Em síntese, o estudo mostra que 30% das pessoas, que sozinhas ou acompanhadas tomam decisões sobre o uso dos recursos financeiros no âmbito doméstico, são analfabetos funcionais.
Tabela 5b – Níveis de alfabetismo por responsabilidade por decisões financeiras no âmbito doméstico
Total | Analfabetos | Rudimentar | Elementar | Intermediário | Proficiente | ||
Base | 2.002 | 88 | 457 | 843 | 453 | 161 | |
2.002 | 100% | 4% | 23% | 42% | 23% | 8% | |
RESPONSÁVEIS | 1.263 | 100% | 6% | 24% | 42% | 21% | 7% |
NÃO RESPONSÁVEIS | 728 | 100% | 2% | 21% | 43% | 25% | 9% |
Hábito de poupar
Um dos elementos relevantes a se ter em conta quando se pensa no comportamento das famílias em relação ao uso de seus recursos financeiros é o hábito que as pessoas tem (ou não) de poupar. Nos 12 meses anteriores à entrevista, um quarto dos entrevistados declarou ter poupado dinheiro. Este comportamento é claramente influenciado pela renda, dada a maior disponibilidade daqueles com maior nível de renda.
Tabela 6 – Hábito de poupar (nos últimos 12 meses) por Renda Familiar
TOTAL | Até 1 salário mínimo |
Mais de 1 a 2 salários mínimos | Mais de 2 a 5 salários mínimos | Acima de 5 salários mínimos | Não respondeu | ||
Base |
2.002 | 250 | 552 | 697 | 243 | 260 | |
Tem poupado |
532 | 27% | 11% | 18% | 31% | 49% | 27% |
Não tem poupado |
1.449 | 72% | 88% | 81% | 68% | 51% | 70% |
Não sabe / |
21 | 1% | 1% | 0% | 0% | 0% | 3% |
TOTAL |
2.002 | 100% | 100% | 100% | 100% | 100% | 100% |
Com efeito, enquanto 49% daqueles com renda familiar superior a 5 salários mínimos declaravam ter poupado nos 12 meses anteriores à entrevista, esta proporção cai para 31%, 18% e 11% à medida em que a faixa de renda é reduzida.
Dada a já comentada associação entre alfabetismo e renda, verifica-se também uma significativa associação entre o alfabetismo e o hábito de poupar. Em outras palavras, enquanto os analfabetos funcionais representam 27% no total da população de 15 a 64 anos, este grupo equivale a apenas 16% dentre os que declararam ter poupado nos 12 meses anteriores à entrevista e a 32% (o dobro) entre aqueles que afirmaram não ter poupado no mesmo período.
Tabela 7 – Hábito de poupar (nos últimos 12 meses) por níveis de alfabetismo
Total | Analfabeto | Rudimentar | Elementar | Intermediário | Proficiente | ||
Base | 2.002 | 88 | 457 | 843 | 453 | 161 | |
TOTAL | 2.002 | 100% | 4% | 23% | 42% | 23% | 8% |
TÊM POUPADO | 1.263 | 100% | 1% | 15% | 42% | 29% | 13% |
NÃO TÊM POUPADO | 728 | 100% | 6% | 26% | 42% | 20% | 6% |
Diferentes mecanismos de acesso ao crédito
Na amostra pesquisada, 55% declaram não ter acesso a nenhum dos serviços formais de crédito e financiamento listados no estudo. Esta proporção é claramente maior entre os analfabetos funcionais: 88% dos analfabetos e 66% daqueles alfabetizados em nível rudimentar declaram não ter acesso a nenhum dos serviços elencados pelo estudo, enquanto esta proporção reduz-se para 56% para os de nível elementar, 41% para os de nível intermediário e 37% junto às pessoas de nível proficiente de alfabetismo.
Tabela 8a – Acesso a serviços financeiros por nível de alfabetismo
TOTAL | Analfabeto | Rudimentar | Elementar | Intermediário | Proficiente | ||
Base | 2.002 | 88 | 457 | 843 | 453 | 161 | |
NÃO TEM NENHUM DESTES | 1.094 | 55% | 88% | 66% | 56% | 41% | 37% |
Cartão de crédito | 661 | 33% | 3% | 21% | 32% | 45% | 55% |
Carnês de lojas | 263 | 13% | 3% | 9% | 15% | 16% | 14% |
Cheque especial | 127 | 6% | 0% | 3% | 6% | 9% | 14% |
Financiamento de carro | 119 | 6% | 0% | 3% | 5% | 9% | 14% |
Empréstimo pessoal | 110 | 5% | 1% | 3% | 6% | 5% | 13% |
Crédito consignado | 71 | 4% | 0% | 2% | 3% | 5% | 7% |
Financiamento de casa | 57 | 3% | 0% | 0% | 3% | 4% | 6% |
Não sabe / não respondeu | 72 | 4% | 6% | 5% | 3% | 4% | 1% |
TOTAL | 2.002 | 100% | 100% | 100% | 100% | 100% | 100% |
TÊM PELO MENOS UM DESTES SERVIÇOS | 836 | 42% | 7% | 29% | 41% | 55% | 62% |
Dentre os serviços listados no estudo, o cartão de crédito e os carnês de lojas são aqueles acessados com maior frequência, respectivamente por 33% e 13% dos entrevistados neste estudo. É interessante notar que estes dois serviços têm perfis de acesso bem diferentes entre si: enquanto o acesso ao cartão de crédito cresce à medida que aumenta o nível de alfabetismo, os carnês de lojas têm uma penetração equivalente, ao redor de 15%, nos diferentes níveis que compõem o grupo dos funcionalmente alfabetizados.
Vistos por outra perspectiva, os dados do estudo mostram que, embora em menor proporção, é significativa a parcela de analfabetos funcionais com acesso a serviços que possibilitam o acesso a crédito, como mostra a tabela abaixo:
Tabela 8b – Acesso a serviços financeiros por nível de alfabetismo
TOTAL | Analfabeto | Rudimentar | Elementar | Intermediário | Proficiente | ||
Base | 2.002 | 88 | 457 | 843 | 453 | 161 | |
TOTAL | 2.002 | 100% | 4% | 23% | 42% | 23% | 8% |
NÃO TEM NENHUM DOS SERVIÇOS LISTADOS | 1.094 | 100% | 7% | 28% | 43% | 17% | 5% |
TÊM PELO MENOS UM DOS SERVIÇOS LISTADOS | 836 | 100% | 1% | 16% | 42% | 30% | 12% |
Da análise dos dados depreende-se que:
- O grupo dos funcionalmente alfabetizados tem um peso proporcionalmente maior quando se analisa o perfil de quem tem acesso a serviços de crédito, equivalente a 84%;
- Complementarmente, constata-se que 17% dos usuários dos serviços incluídos no estudo podem ser considerados analfabetos funcionais.
Desafios para fazer frente aos compromissos financeiros
Os dados do estudo Alfabetismo e Comportamento Financeiro indicam, por fim, que os desafios para fazer frente aos compromissos financeiros assumidos variam entre os diferentes serviços e o grau de alfabetismo dos tomadores de crédito.
Tabela 9 – Pagamentos em atraso por grupos de alfabetismo
TOTAL | Analfabeto Funcionais | Funcionalmente alfabetizados | ||
Base | Usuários de cada serviço | |||
TÊM PELO MENOS UMA DESTAS CONTAS EM ATRASO | 149 | 55% | 88% | 66% |
Cartão de crédito | 77 | 12% | 21% | 10% |
Carnês de lojas | 43 | 16% | 18% | 16% |
Cheque especial | 14 | 11% | 15% | 11% |
Financiamento de carro | 21 | 18% | 43% | 14% |
Empréstimo pessoal | 17 | 15% | 38% | 12% |
Crédito consignado | 14 | 20% | 36% | 17% |
Financiamento de casa | 18 | 32% | 50% | 31% |
NÃO TEM NENHUM DESTES SERVIÇOS EM ATRASO | 659 | 79% | 70% | 81% |
TOTAL TEM PELO MENOS UM DESTES SERVIÇOS | 837 | 100% | 27% | 16% |
Nota: as pequenas diferenças na tabela acima referem-se a pessoas que não souberam ou não quiseram responder
A partir dos dados tabela mostra que:
- Dentre os que utilizam cada um dos serviços analisados, o financiamento imobiliário é o que tem maior proporção de pagamentos em atraso. Com efeito, 32% dos entrevistadores que informaram fazer uso deste mecanismo de crédito declararam ter parcelas em atraso. Esta proporção chega a 50% no grupo dos analfabetos funcionais.
- Seguem, em termos de maior proporção de pagamentos em atraso dentre os usuários dos serviços, o crédito consignado, o financiamento de veículos, os carnês de lojas e os empréstimos pessoais, respectivamente com 20%, 18%, 16% e 15% de usuários com parcelas em atraso.
- Com exceção dos créditos de lojas, a proporção de analfabetos funcionais que não puderam cumprir com o pagamento nas datas previstas é sempre sensivelmente mais alta do que aquela observada no grupo dos funcionalmente alfabetizados.
Segundo Ana Lima, uma das consequências mais perversas dos ciclos recessivos é o impacto negativo na formação de poupança e o endividamento excessivo, por um uso não sustentável de mecanismos de crédito, especialmente após a forte expansão do uso destes mecanismos no período anterior. “Contribuir com dados que possam subsidiar decisões setoriais e de políticas públicas, no sentido de minimizar retrocessos e de preparar a sociedade brasileira para um novo ciclo de desenvolvimento, é um dos objetivos deste estudo especial sobre Alfabetismo e Comportamento Financeiro”, conclui a diretora executiva do IPM.