O Marco Civil da Internet e a guarda de registros

João Carlos Zanon*

Stefano Rodotà, professor titular da Universidade “La Sapienza” de Roma, referindo-se em um de seus livros a um filme de 1998, dirigido por Tony Scott, “Inimigo do Estado”, onde um dos personagens diz: “a única privacidade que você tem está sua cabeça. Talvez nem mesmo lá.”, observa que têm sido realizadas pesquisas sobre “digitais cerebrais”, cujo propósito é investigar a memória individual em busca de indícios que possam apontar para a memória de eventos passados e, portanto, possam ser tomadas como prova de participação em tais eventos. Dr. Zanon

E conclui: “Atualmente, podemos sustentar com segurança que a privacidade mental, a mais íntima esfera, está sob ameaça, violando a dimensão mais reclusa de uma pessoa.”[1]  De fato, todos nós temos, em maior ou menor grau, a sensação de que a noção de privacidade está passando uma drástica reformulação hodiernamente. Vivemos numa sociedade da informação, que também é da vigilância e da classificação. Em nenhum outro ambiente, porém, a vigilância é tão implacável como na internet.

São comuns e difundidas as ideias de que privacidade e internet são figuras antagônicas e de que o ciberespaço é uma “terra sem lei”. Há uma corrente que defende a autorregulação da internet, sob o argumento de que eventuais injustiças e conflitos porventura nela surgidos acabariam por ser identificados e compostos pelos próprios usuários. Em 1996, um dos fundadores da Eletronic Frontier Foundation, John Perry Barlow, divulgou texto intitulado “A Declaration of the Independence of Cyberspace”, baseado na Declaração de Independência dos Estados Unidos, no qual proclamava que: “Governos do Mundo Industrial, fatigados colossos de carne e aço, eu venho do ciberespaço, o novo lar da Mente.

Em nome do futuro, peço a vocês do passado que nos deixem em paz. Vocês não são bem-vindos entre nós. Vocês não são soberanos aqui onde nós nos encontramos.”[2] 

O Marco Civil da Internet vem demonstrar que a propugnada independência do mundo virtual, porém, não se sucedeu. E com razão. Isso porque, conquanto os problemas e conflitos nasçam e se propaguem no ciberespaço – em velocidade extraordinária, é bom assinalar –, é no mundo real que são sentidos os seus nefastos efeitos.  No âmbito da privacidade, talvez o mais grave e frequente dos problemas atuais seja o apoderamento dos dados pessoais dos indivíduos.

“Nós somos os nossos dados”, pois eles nos definem, nos classificam, nos dão acesso e nos privam de serviços e produtos, públicos e privados. Do ponto de vista econômico, nossos dados pessoais se transformaram em preciosos insumos informáticos para sofisticados sistemas de tratamento de dados, que se interconectam e se cruzam, produzindo “perfis” absolutamente completos até mesmo de simples e anônimos cidadãos.

Neste ambiente não existem dados pessoais desprezíveis. Públicos ou privados, todos são garimpados na gigantesca mina que é a internet. Somados, agrupados e devidamente tratados, os dados pessoais permitem que sejam traçados perfis precisos de indivíduos, sinônimo de lucro na Era do marketing personalizado.

Nossos dados pessoais tornam-se commodities. Entretanto, nem tudo que é tecnologicamente possível é também socialmente desejável, eticamente aceitável e juridicamente legítimo.

O Marco Civil da Internet buscou ordenar um pouco essa questão quanto à coleta e ao tratamento dos registros de uso da internet. A lei determina que os provedores de acesso [Oi, Vivo, GVT, Net etc.] deverão manter sob sigilo, em ambiente controlado e com segurança e pelo período de um ano, os dados de conexão, tais como o número de IP, data e horário do acesso.

As empresas que provêm apenas conexão à internet não poderão guardar os registros de acesso a aplicações de internet [os sites, por exemplo]. De seu turno, os provedores de aplicações na internet [Google, Facebook, Instagram etc.] deverão guardar apenas os registros de acesso aos seus sites, também em ambiente controlado e com segurança, porém pelo período de seis meses.

Os provedores de aplicações estão proibidos de guardar outros dados de acesso sem prévia autorização do usuário, hipótese em que deverá informar a este a finalidade e a destinação desses dados. Em ambos os casos, isto é tanto os dados de conexão quanto os de acesso a aplicações, somente podem ser abertos mediante ordem judicial.

O Marco Civil deu, assim, um passo adiante no regulamento dessa questão. Porém, há um longo caminho a percorrer até consecução de um nível desejável de proteção dos dados pessoais no Brasil. Necessitamos, urgentemente, de uma lei específica que promova a proteção ampla dos dados pessoais, nos moldes, aliás, do que já vem ocorrendo em outros países da América Latina e da Europa.

* João Carlos Zanon é bacharel em Direito pela USP, mestre e doutorando pela PUC-SP, advogado e autor de títulos da Revista dos Tribunais, selo editorial da Thomson Reuters no Brasil.

 

[1] RODOTÀ, Stefano. A vida na sociedade da vigilância – a privacidade hoje, 1.a ed., Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 13-14.

[2] Tradução livre.O texto integral pode ser acessado em <https://projects.eff.org/~barlow/Declaration-Final.html>.

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