Justiça no mundo digital

A informatização do processo judicial, disciplinada por lei federal em 2006, ajudou a quebrar  paradigmas no âmbito do Poder Judiciário. Em paralelo com o avanço do conhecimento sobre Direito Eletrônico e da informática jurídica, a virtualização do processo tem forçado advogados de todo o País a se desvencilhar da arraigada tradição ligada ao documento físico e a encarar a possibilidade de um ambiente quase sem papel. Neste momento, grande número de profissionais já faz petições eletrônicas, por exemplo, sem precisar se locomover até os fóruns. Ao mesmo tempo, escritórios e departamentos jurídicos correm contra o tempo em busca das metodologias e soluções tecnológicas mais adequadas para modernizar seus processos, em especial a organização, digitalização e recuperação de documentos legais. De acordo com alguns fornecedores de soluções de ECM, o setor jurídico está entre os que mais crescem no uso desse tipo de tecnologia. 

[private] A marcha rumo ao mundo digitalizado, entretanto, não está livre de barreiras. Para começar, o processo eletrônico ainda não é total, o que aprisiona escritórios de advocacia em um paradoxo. “Eles produzem a maioria dos seus documentos em computador e, ao mesmo tempo, têm a obrigação legal de imprimi-los”, explica o tabelião de notas Angelo Volpi Neto. O resultado, é um ambiente onde os profissionais lidam com três tipos de arquivos. “Um digitado, com todas as possibilidades de documentos estruturados; outro impresso, segundo as mazelas dos documentos em papel com validade legal e assinaturas manuscritas; e um terceiro digitalizado, com suas restrições em indexação”, explica o tabelião.

Autor de livros nas áreas de Direito, comércio eletrônico e segurança,  Volpi considera que o processo judicial caminha a passos largos, mas enfrenta problemas de difícil resolução. “Não sabemos, nem mesmo os tribunais ou técnicos, como resolver alguns deles”, admite, acrescentando que esse cenário de incerteza não é novidade no Brasil. “Sempre foi assim. Uma prova é o voto digital, que veio aos trancos e são muitas as dúvidas sobre sua higidez”, exemplifica.

Otimista, a consultora especializada em documentação, Simone Modenesi, enxerga significativo amadurecimento no setor no que tange à  informatização e gestão de documentos, em especial nos grandes escritórios. Segundo ela, a tendência ganha força também nos escritórios médios e departamentos jurídicos, onde o desafio maior - além de romper tradições e convencer os profissionais quanto aos ganhos em termos de segurança, eficiência e conforto – é ingressar no mundo digital sem levar junto os problemas do mundo físico. “A empresa precisa se estruturar, na forma de sistemas, para que não ocorra mera substituição do caos de papel pelo caos eletrônico”, alerta a especialista, informando que o planejamento é essencial. “Da prospecção até o fechamento de um projeto de ECM, passando pelo levantamento de necessidades e verificação da aplicabilidade para o negócio, pode-se levar até oito meses”, diz.

As análises prévias envolvem estudo sobre quais soluções de ECM, das diversas  disponíveis no mercado, mais se ajustam ao trabalho dos advogados, uma vez que não há ferramentas específicas para o segmento. “Quando falo sobre ferramentas ou sistemas, enfatizo a  importância da escolha da empresa que fará a implantação do software. Optar por quem tem  experiência no setor jurídico é fator de sucesso para o projeto”, diz Simone, que presta consultoria para companhias como a ATS Informática, que disponibiliza para o setor jurídico um leque de soluções de gerenciamento de documentos, automação na elaboração de documentos e distribuição.

Em sua função, Simone organiza arquivos e informações e estabelece procedimentos relativos a tratamento de documentos e tabela de temporalidade – considerando os prazos de preservação de documentos legais digitalizados determinados pelo legislador – , entre outros, de forma a normatizar o fluxo documental da companhia. “O serviço de organização de arquivo pode ser adquirido juntamente com a ferramenta para automatizar os processos, a critério da empresa”, explica Simone, para quem ainda persiste o mito de que projetos dessa natureza são inviáveis para muitos escritórios, devido ao preço e complexidade, destaca que é possível e mais viável implementar um sistema aos poucos na empresa. Para Simone, considera-se em vantagem aquela que atingiu um nível de organização e informatização que permite disponibilizar seus documentos para todos os seus colaboradores, via tela de computador. “O compartilhamento e a recuperação eficiente, por meio do que chamamos de portal do conhecimento, possibilita acesso fácil e rápido a todo o histórico dos casos, ganho de eficiência no trabalho e na satisfação os clientes”, exemplifica a consultora. Além disso – ela continua, o efeito é multiplicador, atingindo toda a rede de filiais da empresa usuária. “Some-se ao  compartilhamento da informação, à  preservação do conhecimento e ao ganho de tempo e de espaço físico, o favorecimento ao trabalho in home em decorrência de um sistema de ECM. O acesso ao acervo do escritório via Web é um dos grandes benefícios do projeto”, comenta Simone.

Resistência histórica

Antonio Carlos Alvim de Macedo, presidente da Macdata, especializada em  soluções de gestão processual para escritórios e departamentos jurídicos, salienta que a área tem como forte característica o conservadorismo. Por essa razão, o executivo, diferentemente de outros analistas consultados,  considera que a  implantação de novas tecnologias ocorre em ritmo desacelerado no setor, à exceção dos grandes escritórios que, empurrados pela necessidade de incrementar a produtividade e manter a lucratividade, valem-se mais intensamente de tecnologias para  organizar e recuperar documentos. “A grande maioria da classe jurídica ainda resiste em substituir papel por imagens digitalizadas, incluindo membros do próprio Poder Judiciário”, afirma Macedo. Para enfatizar a resistência histórica do setor, ele destaca que a máquina de escrever foi duramente rejeitada por muitos juízes, os quais somente aceitavam petições escritas à mão.

Nesse contexto, Macedo considera que o principal desafio quanto ao uso de tecnologia para gestão de conteúdo no meio jurídico é conseguir aproximar ao máximo o manuseio eletrônico do  manuseio manual, para facilitar a vida do profissional da área. Ele lembra que um processo jurídico é composto de diversos atos processuais, que por sua vez geram os mais diversos tipos de documentos, que necessitam ficar ativos e interligados. “Isso significa que o profissional pode ter a necessidade de acessar uma determinada página do processo em razão de a mesma ter sido mencionada em uma decisão final. Para que isso aconteça de uma forma simples e rápida na operação final, é necessário que a tecnologia faça uso de soluções complexas, combinadas com apoio especializado na classificação dos documentos”, diz.

Especializada nesse tipo de apoio, a consultora Simone diz que organização e identificação de documentos do setor jurídico não se diferencia dos demais setores no que tange à definição de categorias e tipologias documentais, as quais são traduzidas para os sistemas informatizados, possibilitando a busca e recuperação dos documentos. “As empresas são livres para gerar suas próprias categorias, mas, a exemplo de outras áreas, na hora de fazer a taxonomia observam em geral as classificações e termos já utilizados na sua área de conhecimento principal, o Direito”, diz Simone. Sobre esse tema, o tabelião Volpi informa que, atualmente, o número do processo ainda é a forma mais usada de organização, juntamente com os campos autor e réu.  “Não vejo grandes problemas na organização e identificação dos documentos legais. Os milhares de processos e documentos em geral requisitados pela burocracia lapidaram os operadores do direito na organização de seus indexadores”, diz o especialista.

Por outro lado, ele se preocupa com a formação de arquivo intelectual dos atores da vida judiciária.  “Depois de muitos anos e processos em nossas cabeças, já não é mais possível armazenar tanto conhecimento, e nossos arquivos pessoais serão imprescindíveis para atingir os objetivos”, acredita Volpi. Em sua visão, quem participa da rotina judiciária sofre de alguma forma  influência de Immanuel Kant (filósofo alemão), no sentido de que, para estruturar solução legal para um  problema atual, o raciocínio epistemológico começa a partir do conhecimento obtido no passado. “Convencer o magistrado de sua tese ou preparar o contrato ideal requer percorrer o caminho da crença, da filosofia e da lógica”, complementa.

Prova e autenticidade

Além do processo eletrônico e da digitalização de documentos legais, o avanço do mundo digital sobre o físico exige dos operadores do Direito conhecimentos quanto aos temas mais complexos, como as provas obtidas por meio eletrônico e os meios tecnológicos disponíveis para sua aferição e autenticidade, tema que ainda suscita dúvidas entre os profissionais do meio.

Volpi ressalta que a novidade imposta pela web requer desses profissionais um conhecimento muito além do jurídico, para a obtenção desse tipo de prova.  “Dissecar um arquivo digital em sua fonte e garantir sua originalidade e, depois disso, convencer o juiz é o desafio neste momento em que as relações por computador  imperam no mundo dos negócios”, diz o especialista. Segundo ele, ao mesmo tempo que  e-mail, Twitter, sites, blogs, mensagens instantâneas e logs ajudam na montagem de uma prova, todos são elementos que podem desaparecer facilmente, o que requer ação rápida e orientação dos clientes. “Novos instrumentos, como as Atas Notariais, que são uma espécie de escritura, podem ser fundamentais na garantia e perpetuação da prova”, acrescenta Volpi. Ele explica que, por meio desse processo,  o tabelião constata o conteúdo de um site ou e-mail, por exemplo. “Dessa forma,  inverte-se o ônus processual, cabendo à outra parte desfazer a prova, pois sendo feita por tabelião, que tem fé pública, assume a presunção de autenticidade”, explica.

Outro aspecto relevante nesse contexto diz respeito a meios de autenticação de documentos eletrônicos, como certificação e assinatura digitais, esta última ainda considerada uma incógnita pela maioria dos profissionais do setor jurídico, segundo Volpi. “Sua complexidade e a forma como vem sendo implementadas no Brasil não ajudam na melhor compreensão de suas características. Cerca de 90% dos usuários não usam a certificação em todo seu potencial”, calcula. [/private]

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