Como seria a administração pública e a interação do Estado com a sociedade sem uso do papel e como implementar este projeto em todos os órgãos públicos do Brasil? Esta é a proposta do Livro Implantação de um Governo Eletrônico e-Gov, lançado em março deste ano pela Editora Brasport.
À primeira vista, a ideia de substituir o papel por uma imagem pode não expressar o real significado para a reconstrução dos pilares do Estado que conhecemos. Se olharmos para Brasília, por exemplo, com a mira sobre a esplanada dos ministérios, com todos aqueles prédios suntuosos, magnânimos, difícil imaginar que tudo aquilo que a vista alcança foi concebido nos limites restritos do papel, como instrumento de controle para tomar as medidas e manter seu funcionamento administrativo burocrático.
Segundo estudos do Banco Mundial, o Brasil se tornou um dos países mais burocratizados justamente no momento em que a prosperidade no mundo, nos últimos vinte anos, foi impulsionada pelo aumento da velocidade do fluxo da informação em meio digital, rompendo as amarras do papel. Da mesma forma, a substituição de um documento em papel por um documento digital é capaz de promover no Estado uma verdadeira reengenharia procedimental e administrativa.
Esta é uma realidade cada vez mais contundente nas 700 unidades administrativas presentes em todo território nacional da Receita Federal, da Procuradoria Geral da Fazenda Nacional e do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais. Uma experiência inusitada na área pública nesta dimensão, ainda pouco vivenciada e explorada, que induz a repensar o funcionamento da inter-relação dos órgãos públicos e sua relação com a Sociedade.
A administração burocrática remonta desde os tempos do Império Romano como forma de alcançar níveis de organização de grandes dimensões. Esta visão de governo foi concebida para manter um regime escravocrata de dominação do homem sobre outro homem, onde o conceito de sigilo era fundamental para ganhar ou perder guerras. A segmentação da informação numa linha hierárquica especializada e rígida de comando mantém o poder centralizado na alta cúpula de uma grande organização que detém a visão de conjunto. Não foi concebida para ser um governo do povo para o povo, nunca teve como propósito tornar a sociedade um controlador do seu governo. Entretanto, tal forma de administrar uma grande organização foi passada adiante de geração em geração, sobrevivendo à evolução das concepções de Estado, da antiguidade até o mundo contemporâneo, sendo incorporada na igreja e até nas grandes empresas, pois não se vislumbrava outra forma possível de controle.
No século XX, Max Weber a descreveu induzindo sua popularização na administração pública no mundo inteiro. No Brasil, ela chegou com a criação do DASP (Departamento da Administração do Servidor Público), instituído pelo presidente Getúlio Vargas na década de 30. Para combater o patrimonialismo e o clientelismo sobre o Bem Público, a administração burocrática tem sua forma de controle projetada em uma estrutura fortemente hierarquizada e especializada, para distribuir o poder e garantir que as decisões sejam cumpridas. O papel e a caneta eram os instrumentos de controle que justificavam a hierarquia, não havia outra forma de controle que não um papel sobre a mesa para receber vários “de acordo” por diversas pessoas.
Infelizmente, mesmo com o advento da Tecnologia da Informação (TI), a cultura burocrática ainda permanece com as mesmas estruturas organizacionais e com a administração do papel e da assinatura em todo o seu ritual do poder. Apesar do desenvolvimento tecnológico e da redução do controle burocrático das decisões dentro de sistemas padronizados de entrada e saídas, a imensa maioria das decisões carece do papel e da caneta para ser homologada.
O que muda na gestão pública com a imagem do papel?
A imagem rompe a barreira física e temporal de controle concentrado e local e permite o controle amplo, difuso, atemporal e à distância graças à transparência e à rastreabilidade garantidas pela Tecnologia da Informação (ECM). Aumenta a segurança dos atos por inibir adulterações e por facilitar a responsabilização, bem como reforça o compromisso do servidor público lato sensu com seu trabalho, seja ele um funcionário da ponta, um gestor público ou um político, pois estará sempre sendo observado por todos. A imagem induz a um comportamento mais ético e eficiente, o que permite uma simplificação da estrutura de controle burocrático, com redução dos níveis de instâncias de julgamento por via da descentralização administrativa, permitindo julgamentos colegiados virtuais em turmas especializadas por assunto em âmbito nacional. Boa parte da necessidade de vários centros pulverizados de decisão é por conta da dificuldade e do custo da movimentação física do papel. Se um papel fosse protocolado no Oiapoque e julgado no Chuí, o custo da frota de Boeings necessários para transportar os processos seria maior que toda a folha de pagamento do órgão.
Já passou o momento de evoluir a administração burocrática, por absoluta falta de funcionalidade, para uma administração gerencial com foco no processo de trabalho e nos resultados, utilizando uma estrutura em rede que permita ao mesmo tempo maior controle e publicidade dos atos processuais, mas também composta por novas estruturas concentradas de decisões tomadas em equipe e mais especializadas. As decisões monocráticas pouco transparentes contêm os riscos da ignorância por versar sobre inúmeros assuntos, por conter conveniências ou mesmo por corrupção. Por conta disto, precisa-se de uma superestrutura hierárquica de controle, que posterga a decisão transitada em julgamento definitivo na esfera administrativa. Por um lado, o trabalho dos servidores em última análise consiste em organizar as informações e alimentar sistemas que auxiliam na tomada de decisão segundo uma regra de negócio, oriunda na maioria dos casos de uma legislação.
Quando os fundamentos da decisão são transparentes para todos os públicos interessados, a administração pública se comporta como um sistema integrado, com regras de negócio mais aderentes à norma, mais uniforme e mais funcional – melhor ainda, permite que as regras sejam revisadas mais rapidamente para acompanhar a evolução dos trabalhos.
A imagem permite que um servidor público aprendam mais facilmente pelo acesso ao trabalho realizado por outro colega, quebrando a maior barreira do crescimento organizacional: a absorção da informação e do conhecimento. A imagem introduz novos elementos para se repensar a forma de trabalho, com introdução do teletrabalho, vencendo suas barreiras físicas e temporais, ensejando a redução do número de unidades administrativas por via da especialização dos trabalhos reorganizados no âmbito nacional.
Por uma nova Organização
A substituição de um documento “papel” por um documento “imagem” abre possibilidades ainda insuspeitas de uma nova concepção de Estado e Sociedade. Meio viável de prover obediência a Lei de Acesso a Informação. Para impulsionar esta idéia o Plenário do Senado aprovou semana passada, 12/06/2012, o Projeto de Lei da Câmara (PLC) 11/07 que equipara uma imagem ao mesmo valor jurídico de um documento original em papel, permitindo sua destruição antes de transcorrido os prazos prescricionais, sem perda do seu valor probatório. Um brinde a modernidade e a consolidação da democracia brasileira.
Marcelo de Sousa Silva, Auditor Fiscal da Receita Federal, Gestor Usuário do sistema e-Processo – Processo Administrativo Digital e autor do livro.