Desatando nós com CMIS

O termo “interoperabilidade” compõe a lista de mantras repetidos à exaustão nos departamentos de Tecnologia da Informação das empresas. Afora suas definições técnicas, a palavra traduz um sonho dourado para qualquer CIO, CEO ou CFO, possibilidade de integrar áreas, aplicações, sistemas, informações e processos sem precisar abrir mão do legado, ou seja, avançar sem perder o que já foi gasto até agora. No contexto de gestão de conteúdo empresarial (ECM), esse sonho tem sido alimentado ultimamente pela sigla CMIS (Content Management Interoperability Services). Trata-se de novo padrão de comunicação via web services que permite interação entre repositórios de conteúdo, independentemente do fornecedor ou infraestrutura tecnológica. A nova especificação de interface foi anunciada no fim de 2008 pela Oasis (Organization for the Advancement of Structured Information Standards), um consórcio sem fins lucrativos que promove o desenvolvimento de padrões abertos. 

[private] O padrão surge como uma luz no fim do túnel para empresas que já experimentam ferramentas de ECM em diferentes níveis de complexidade, mas não usufruem de uma visão holística da organização. De acordo com o especialista em ECM, Walter Koch, a onda de interesse  em torno do CMIS resulta do fato de que, historicamente, muitas empresas optaram por soluções departamentais – cada área desenvolveu seu  modelo – e hoje têm o desejo ou a necessidade de integrar diferentes repositórios sob uma camada única. “Além de permitir que se mantenham os investimentos já realizados sem perder o conteúdo obtido, o padrão atende aos anseios de quem está investindo em uma ferramenta, mas não quer ficar amarrado à mesma para sempre”, diz. A alternativa – ele explica, é colocar a camada de CMIS entre as aplicações e a ferramenta, garantindo liberdade para eventuais migrações futuras.

Mais chance de sucesso

A demanda crescente dos clientes, com os fornecedores, por cenários de integração por meio de múltiplos repositórios é a principal força que gerou o CMIS, segundo Jens Hübel, principal system architect da Open Text. O executivo informa que o padrão ainda precisa de aprovação formal, mas já está pronto para o lançamento, previsto para ocorrer ainda este ano. Com a norma, a indústria passa a contar com um modelo de dados e um protocolo de ligação que descreve o formato técnico de transporte na troca de dados. “O CMIS é projetado para ser colocado em camadas sobre repositórios e interfaces existentes. Deverá suportar uma ampla gama de repositórios e cobrir casos típicos de ECM, como o acesso compartilhado de documentos, navegação em pasta, armazenamento de conteúdos metadados, recuperação, controle de acesso, versionamento e consulta ou pesquisa”, informa Hübel.

Mas o novo padrão será realmente útil? Qual a diferença em relação a outros já adotados no setor de ECM? Segundo Hübel, é muito útil porque foca casos de usos comuns e mais típicos, e não tenta cobrir todos os aspectos de qualquer fornecedor. “Durante o processo de padronização, houve muitas discussões sobre quais recursos deveriam ser incluídos e quais deveriam ser deixados de fora da primeira versão. Optou-se sempre pelo padrão simples e implementável pelo maior número possível de vendedores”, diz.

Muitos aspectos dão a essa iniciativa de padronização mais chance de sucesso do que outras similares, na visão do executivo da Open Text. Para começar, o CMIS conseguiu o engajamento de todos os principais fornecedores mundiais de ECM. Além disso, trata-se de plataforma neutra cujas implementações ocorrem tanto no universo Java quanto no mundo Microsoft, permitindo a interoperabilidade de ambos. “Isso é um avanço, por que outras normas são restritas a certas linguagens de implementação ou plataformas de sistema operacional”, avalia Hübel, acrescentando que os esforços de código aberto em torno do CMIS evoluem rapidamente, o que pode significar para o mercado menos esforço e menos custo na adoção do padrão. Ele lembra, ainda, que muitas das demais iniciativas de padronização começaram há 10 ou 15 anos,  o que limita muito o seu uso atual, tendo em vista que o ECM mudou muito nesse período.

Adoção no Brasil e no mundo

Com o apoio dos principais fornecedores, o que inclui Alfresco, EMC, IBM, Microsoft, Oracle, SAP e outros, além da Open Text, a norma já movimenta a indústria e mostra indícios de sucesso antes mesmo do seu lançamento. A Open Text, envolvida na execução e avaliação desde os primeiros rascunhos do caderno de especificações,  já forneceu servidor CMIS público para teste e contribuiu para o desenvolvimento de aplicação em Java, juntamente com Alfresco e SAP. “Ressalte-se também o surgimento de grande número de bibliotecas e ferramentas em várias plataformas, incluindo Java, .Net, tecnologias Adobe, Python, PHP e até  plataformas móveis”, informa Hübel. “Algumas pessoas até já dizem que o CMIS é o  SQL do ECM”, diz ele. Independentemente de a comparação ser correta ou não, o CMIS é uma grande oportunidade para o crescimento do mercado, mas o cliente é quem decidirá se será um sucesso ou não, na visão do executivo.

No Brasil, é perceptível a demanda por softwares com esse padrão, segundo Hübel. “Especialmente no segmento de governo, onde há uma necessidade de compartilhar informações entre diferentes instituições”, diz. Os benefícios prometidos são atraentes. Para os players, espera-se menos esforço de integração em aplicações dos clientes e em processos de negócios, além de aumento do mercado e das receitas. Para empresas usuárias, os benefícios abrangem desde mais facilidade na integração de processos de negócios que envolvam mais de um repositório, até menos custos de consultoria e integração, entre outros.

Mas a trilha do novo padrão não está livre de obstáculos. O especialista da Open Text lembra que há sempre o risco de os fornecedores adicionarem ao padrão extensões proprietárias que não são interoperáveis. “Podem surgir outras barreiras, como o padrão ser implementado sem manter conformidade com a especificação. Vimos isso acontecer no passado em diferentes áreas. Lembre-se da guerra dos browsers, só para citar um exemplo”, diz Hübel. Por outro lado, ele ressalta que a motivação para CMIS nasceu de uma ideia comum baseada em uma necessidade comum. “Isso reduz o risco, lembrando que o CMIS prevê muitos pontos de extensão onde os vendedores podem adicionar suas funcionalidades específicas, sem quebrar a interoperabilidade”, diz.

Impulso na disseminação do ECM

Na IBM Brasil, Sérgio Fortuna, líder de Information Agenda, diz que o CMIS tem como principal importância a simplificação e, por consequência, a redução do custo do desenvolvimento de aplicações de gestão de conteúdo nos clientes. “Dessa forma, ajuda a disseminar a adoção de soluções de ECM”, diz Fortuna.

Partidária vigorosa de padrões, por cortarem as “amarras” que prendem clientes a tecnologias proprietárias, a IBM considera “extremamente positivas” as perspectivas de adoção do CMIS na indústria de TI, estimulada pelo empenho dos grandes fornecedores no desenvolvimento da norma. Fortuna considera que um primeiro impacto consistirá no esforço de cada player adequar seu produto ou suíte ao CMIS. “Porém, após isso, a maior facilidade de desenvolvimento de aplicações deverá acelerar a adoção do ECM, o que é excelente para todos, inclusive para desenvolvedores, que poderão criar uma mesma aplicação apta a  ser utilizada com repositórios de diversos fornecedores de ECM”, diz.

Exemplos de como o novo padrão trará benefícios para os vários atores envolvidos também são apresentados por Gilberto Lanzer, engenheiro de sistemas sênior para a América Latina, da EMC, uma das líderes no movimento inicial de surgimento do padrão. “Os players ganharão com a interoperabilidade entre soluções de gestão de conteúdo, o que permitirá a resolução de problemas como transferência de documentos legais entre tribunais, bancos etc. que tenham plataformas distintas de gestão de conteúdo”, diz. As empresas usuárias, por sua vez, sentirão a necessidade de construir camadas de software adicionais para certificar-se em CMIS. “O padrão amplia o uso e desmistifica um pouco a complexidade de soluções de content management”, acredita Lanzer.

Márcio Butuem, diretor de Consultoria de Vendas da Oracle do Brasil, tem opinião similar. Segundo ele, sistemas com necessidades simples de gestão de conteúdo poderão utilizar o CMIS, já que seu objetivo é fornecer uma camada básica de serviços. “Na verdade, a intenção é permitir que os fornecedores padronizem um conjunto genérico e universal de funcionalidades que um sistema de ECM deve prover. Um maior número de aplicações poderá  utilizar informações oriundas de sistemas de ECM e o desenvolvedor não precisará se preocupar com a tecnologia do repositório de conteúdo para efetuar a integração”, diz, destacando que integrações mais complexas talvez requeiram outras estratégias.

Butuem recorda que, ao longo dos anos, foram criados muitos padrões de comunicação com sistemas de gestão de conteúdo, como o Open Document Management API (ODMA) ou o protocolo Web-based Distributed Authoring and Versioning (WebDAV), que possui métodos para mover, copiar, bloquear ou desbloquear arquivos, entre outros recursos. Outros focaram em oferecer uma API Java para repositórios de conteúdo, como as especificações JSR-170 e JSR-283. O CMIS dá um passo adiante no atendimento da demanda por  serviços padronizados em Java.NET e tecnologias open source. “Essa demanda continua crescendo porque o ECM evolui para se tornar uma plataforma provedora de conteúdo. Como o conteúdo está presente em diversas áreas – websites, aplicativos corporativos, processos de negócio etc. é importante que diversos sistemas consigam interagir com o repositório desse conteúdo”, diz.

Participante no Comitê Técnico que define o CMIS, a Oracle incluiu no roadmap da sua solução de gestão de conteúdo o desenvolvimento de uma API compatível com o padrão CMIS. “Estamos aguardando a especificação final ser aprovada.” Buetem acredita que, como ocorre com todos os novos padrões, levará algum tempo até que se possa avaliar o ritmo e dimensão de uso da norma. “Sua popularização não depende apenas de fornecedores de ECM,  mas também daqueles que fornecem as demais tecnologias que interagem com esses sistemas”, diz. De antemão, o diretor não duvida que empresas usuárias que dispõem de estratégia corporativa de gestão de conteúdo vão adotar o CMIS para garantir a integração com seus sistemas, mesmo em um nível básico.

Aplicações limitadas no início

Em importância, o CMIS é para o gerenciamento de conteúdo o que o SQL foi para o estabelecimento de um padrão para bancos de dados. A opinião é de Cláudia B. Saleh, gerente de Soluções da Alfresco Brasil e América Latina. A executiva é uma das que acreditam que o padrão finalmente irá suprir a necessidade de uma interface-padrão para repositórios de conteúdo. ”Em geral, as empresas adquirem uma aplicação e são obrigadas a refazer tudo, caso resolvam mudar de aplicação ou adquirir  outra para usar em separado ou de forma complementar. Com o CMIS padrão, elas terão mais facilidade, principalmente na pesquisa de dados”, acredita.

Como os demais especialistas consultados, Cláudia faz questão de ressaltar que nem todas as funcionalidades de cada sistema de gerenciamento de conteúdo estarão contempladas, mas apenas um conjunto mínimo. “O CMIS propõe-se a definir primariamente uma linguagem de domínio, uma linguagem para queries (buscas) e  vínculos de protocolo. É  um conjunto-padrão de serviços”, diz.

A executiva informa que a versão 1.0 do padrão acabou de passar por uma segunda revisão pública, onde pessoas ligadas à área de gerenciamento de conteúdo puderam enviar comentários e avaliações. “A data prevista para ratificação do padrão é 15 de abril e as perspectivas de adoção são muito boas, já que os maiores players do mercado estão envolvidos”, diz.

A exemplo de outros fornecedores, a Alfresco já fez protótipos utilizando as especificações do padrão CMIS. “Somos uma das primeiras empresas a ter a especificação já implementada no seu repositório na versão Enterprise”, diz Cláudia. Para a executiva, o uso da versão inicial estará mais concentrado em aplicações de colaboração de conteúdo, portais usando repositórios de gerenciamento de conteúdo, busca em um ou mais repositórios de conteúdo e mashups. “Não entram nessa versão casos de records management, gerenciamento de conteúdo web, gerenciamento de ativos digitais e subscrição e notificação de serviços”, informa.

O CMIS vai facilitar muito a vida de desenvolvedores, integradores e empresas usuárias, mas ainda precisa mostrar ao mercado que não é apenas “mais um padrão, como vários outros que não vingaram no passado”, diz Cláudia. O seu sucesso depende de uma adoção universal por parte dos players e da eliminação de riscos como eventual alteração em benefício de um único player.

Fim do mito do “uber repository”

Na FatWire, partidária do CMIS, a expectativa é grande em relação à norma. “Aguardamos ansiosamente pelo release final e esperamos uma adoção em massa, porque há muitas vantagens em adotar o padrão”, afirma Ivamar Sousa, diretor da FatWire para a América Latina. Otimista, o executivo acredita que a indústria abraçou de forma entusiasmada a visão da gestão de conteúdo distribuída. “O número de empresas participantes cresce enormemente”, diz. Da sua parte, a FatWire encoraja desenvolvedores de aplicações web e  arquitetos de sistemas a ler e fazer alguns experimentos com o CMIS, tendo por base rascunho antecipado do padrão disponibilizado para revisão do público em geral.

Sousa enxerga o modelo definido pelo CMIS como o fim de uma expectativa que existiu por muito tempo no mercado: a de que pudesse haver um repositório que cuidasse de todos os dados desestruturados de uma companhia. “Chegou finalmente ao fim o mito do ‘uber repository’ ou ‘megarrepositório’, promovido inicialmente no contexto de ECM. Já não esperamos por isso. A experiência dos últimos anos nos tem mostrado que repositórios especializados prosperam e se multiplicam a cada dia”, diz o diretor.

São diversas as razões pelas quais a consolidação de conteúdos em um único repositório pode parecer “tolice, impraticável ou até mesmo impossível”, nas palavras de Sousa. Antes de tudo, há o volume gigantesco de conteúdo gerado, recebido e armazenado nas empresas, que cresce em taxas exponenciais. Além de serem distintos quanto ao tipo, esses conteúdos também podem ser usados de formas muito diversas por pessoas ou por aplicações. “Diferentes combinações de volumes de conteúdo, tipo e padrão de utilização necessitam de diferentes tipos de repositório”, conclui o diretor.

Para ilustrar os benefícios da boa nova, o diretor da  FatWire diz que usuários de produtos de gestão de conteúdo web (WCM) terão acesso transparente a conteúdos armazenados em diversos repositórios diretamente da ferramenta de publicação/autoria do website. “Uma imagem pode ser colocada na web e servida a bilhões de visitantes, independentemente se a imagem original está armazenada em um sistema de gestão de documentos, em espaços colaborativos ou na gestão de ativos digitais. Com o CMIS, toda imagem, vídeo ou texto publicados em um website se tornam recurso web que pode ser localizado, manipulado e reutilizado em gadgets e mashups”, finaliza.

Sete fatores que tornam o CMIS mais útil do que outras normas na área de ECM:

 

1 - O CMIS conta com o compromisso de todos os principais fornecedores de ECM.

2 - O CMIS é uma plataforma neutra. Implementações podem ocorrer igualmente em sistemas Microsoft ou baseados em Java, com interoperabilidade entre ambos. Algumas normas são restritas a certas linguagens de implementação ou a determinadas plataformas de sistema operacional.

3 - Muitas das iniciativas existentes estão superadas. Muitas começaram há 10 ou 15 anos, tornando-se atualmente de uso limitado, porque a indústria de ECM mudou muito ao longo do tempo.

4 - O CMIS é projetado em torno de ECM. Alguns padrões estão relacionados com a gestão de conteúdo, mas com foco diferente, e isso em alguns momentos limita a sua utilidade. Muitas vezes, essas deficiências levaram a muitas extensões específicas de fornecedores, o que tornou a interoperabilidade difícil ou impossível.

5 - Implementações independentes de múltiplos fornecedores têm acompanhado essa padronização, desde o seu início.

6 - O CMIS é extensível. Suporta ganchos onde os vendedores podem plugar suas extensões, sem quebrar a interoperabilidade.

7 - Iniciativas de código aberto em torno do CMIS já existem e evoluem rapidamente, o que pode significar menos esforço e custo na adoção do padrão. [/private]

Share This Post

Post Comment